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João Pedro Pais: “Carnide está carregado de emoções em mim. Vivi parte da minha infância aqui”

Diz-se que jamais se deve voltar onde se foi feliz. Ele desafiou a sorte. Quarenta anos depois, João Pedro Pais voltou à Feira da Luz. Hoje, o homem, atleta feito músico, lembra os dias em que vinha a Carnide, pela mão da avó, buscar água à fonte e tirar fotografias no cavalinho de madeira junto à estátua no Largo da Luz.

É o primeiro dos fins-de-semana de Setembro em que a chuva não dá tréguas. As janelas entreabertas deixam passar o som de um dia em tudo diferente daquele vivido por quem veio ao concerto de João Pedro Pais, na Feira da Luz. Os rugidos das guitarras que se ouviram naquela noite, hoje dão lugar ao som da chuva, ao vento — a banda sonora ideal para uma conversa sobre a vida e a arte do músico que guarda Carnide em memórias de família, eternas emoções.

 

Foi atleta de alta competição antes de ingressar na música. O que tem em comum a vida de músico com a de atleta?

Muita coisa. Ter sido atleta de luta olímpica também define o meu caráter, a minha identidade. Aquilo que sou na música trouxe da luta: a minha competitividade, a maneira como me movimento em palco… Isso diz tudo. Provavelmente será diferente da [maneira] dos meus colegas. Não estou a dizer que sou melhor que eles. Não sou melhor que ninguém, mesmo. Sou diferente.

 

Essa humildade também vem da luta?

Eu não sou humilde. O que é a humildade? É reconhecer que os outros são melhores? Não, acho que não é por aí… Aprendi a respeitar quem me respeita, a não subestimar ninguém. E isso sim, foi a luta que me ensinou. Hoje é-se campeão do mundo, amanhã já é outro. Nunca fui um dado adquirido, no desporto e na música. Fui o oitavo melhor [lutador] do mundo em 1989. Até hoje, é a melhor classificação de um português em luta olímpica, no campeonato mundial de séniores. Mas, no ano seguinte já foi outro. Há sempre alguém melhor. Nada é um dado adquirido.

 

Quando lutava tinha essa noção?

Tinha. Ainda hoje tenho. O João Silva sagrou-se agora campeão do mundo em triatlo, na China. É um rapaz com um metro e setenta e com 70kg de peso. Ninguém diria, mas já foi várias vezes campeão do mundo. Percebem onde quero chegar? No desporto adquire-se esse respeito pelo outro.

 

Continua a acompanhar todas essas modalidades com afinco…

Claro que sim, porque isso é o que me move: o desporto move-me. A música é um complemento de um dom que eu possa ter tido, de um talento que adquiri ao olhar para os outros. E é efémero. Hoje sou eu, amanhã aparece outro que salta para a ribalta e depressa se esquecem de mim. Por isso, agradeço o que as pessoas me têm dito ao longo destes anos, o carinho e o apreço das pessoas, mas nunca foi isso que me fez embandeirar em arco.

 

E agora, atuar na Feira da Luz, quase como quando era atleta, volta a jogar em casa. Como descreve a noite que viveu aqui?

Foi brutal, uma noite muito emotiva. Sei o que este sítio carrega de emoções para mim. Na minha infância vinha aqui, com a minha avó, buscar água. Descíamos uma escada, não muito larga, para ir a uma fonte, lá em baixo [no Santuário de Nossa Senhora da Luz]. Ela trazia um cântaro, pequeno, feito de cordame… Acreditávamos que aquela água fazia bem à saúde. Certamente não nos fez mal, porque ambos bebemos dela e, hoje, eu estou bem e saudável.

 

Vinha só com a sua avó?

Com a minha avó e com a minha mãe. Dessa altura, há um episódio que me marcou: na Feira da Luz, havia um cavalinho de madeira junto a uma estátua, no interior do Largo da Luz. Junto a ela, estava sempre um senhor com uma máquina fotográfica daquelas antigas, ainda a preto e branco e com um pano preto que o cobria para não entrar a luz do sol. Eu fui um dos que tirou essa fotografia, há muitos anos, aqui na Feira.

 

Mas a sua história com Carnide não ficou por aí…

Não. Acabei por baptizar o meu filho na Igreja do Seminário dos Franciscanos, também no Largo da Luz. Por isso, Carnide jamais me será indiferente, está carregado de memórias boas para mim.

 

Campeão no desporto, campeão de vendas na música. Quer em discos, quer em salas lotadas. O que fica depois de um grande concerto? O que é que sente?

Fica um vazio, sempre. É esquisito, mas é isso mesmo.

 

Porquê?

Porque a noite foi preenchida, estava cheia. Depois, deparo-me só eu e as ruas da cidade. Estou a pensar no momento em que saí do Coliseu dos Recreios. Lembro-me que saí, mais ou menos, à uma e tal, duas da manhã, se calhar. Nessa altura, já com pouca gente nas ruas, sou um transeunte normal, como todos os outros.

 

Faz questão de andar pelas ruas, depois dos concertos?

Sempre. Porque esse é um momento de reflexão, é o descomprimir. Não me apetece logo ir para casa, quero dar uma volta e pensar na vida.

 

O que é que pensa nessas reflexões?

Penso no que aconteceu. No que correu bem, mas também no que não correu tão bem assim, no que podia ter feito melhor… Estou a lembrar-me das noites depois dos coliseus…

 

Guarda saudade?

Dos coliseus? Não, de todo. Foi tão intenso que não descontraí. A tensão foi tanta para tudo resultasse bem, mesmo com a vinda do Keith Scott [guitarrista de Bryan Adams] como convidado, em Lisboa, ou depois com o Pedro Abrunhosa, no Porto… Fiquei doente a seguir a essas noites, foi esquisito. Soube-me bem ter sentido o público presente nas duas noites, mas não quero voltar a fazer grandes produções tão depressa.

 

Conheceu Keith Scott quando fez a primeira parte da turné de Bryan Adams, em 2003. Quando voltou, o que trouxe na bagagem que não levava quando partiu?

Eramos muito ingénuos, tínhamos cinco anos de estrada. Foi tudo uma novidade para mim e para o resto da equipa. Sair do Campo Grande para Espanha num grande autocarro foi um êxtase, quase como quando eramos crianças ou adolescentes. Sentimo-nos internacionais. Foi aí que dei o salto em Portugal.

 

Acha que o público português reconhece mais facilmente o valor de um artista quando ele é reconhecido no estrangeiro?

Quando em Portugal não te ligam muito, mas de repente fazes um dueto ou uma parceria com alguém lá fora, sim. Mas isso advém da pequenez do nosso mercado. Claro que, em Portugal, tens miúdos que editam canções nas redes sociais e são ouvidas 10 ou 12 milhões de vezes, mas é efémero. O nosso mercado é muito reduzido.

 

Diz que lhe é mais difícil escrever músicas hoje, do que há 20 anos. Que lhe falta a ingenuidade. Não devia o tempo ter-lhe dado mais propriedade e segurança para falar sobre qualquer história?

Isso tem a ver com aquilo que leio e com as pessoas que me rodeiam. Hoje há tanta informação que, se eu não evoluir, a culpa é só minha. Mesmo que continue a escrever sobre aquilo com que me identifico: encontros, desencontros, pessoas no fundo.

 

Gostava de lá voltar? Ao tempo da ingenuidade…

Sim. Acho que estou a conseguir fazer isso em algumas canções. Estou a conseguir libertar-me mais. Houve uma altura em que me preocupava em não me repetir naquilo que dizia nas canções. Isso limitava-me e, se virmos, eu não invento palavras. Elas já estão feitas, faladas e cantadas. Tenho de conseguir reinventar-me, ludibriar-me mesmo. Encontrar uma forma de contar histórias, mesmo que outros já as tenham contado.

 

A sua história…

Sim, é isso mesmo. As canções são a minha história.

 

Descobriu a música muito cedo, mas foi no programa Chuva de Estrelas que se deu a conhecer a um país que parece que esperava por si. Ficou em segundo lugar nesse concurso televisivo com a música dos Delfins, “Ao passar um navio”, que fala de um sonho que acompanha alguém toda uma vida. Qual é o seu?

O meu sonho de vida… viajar, conhecer o mundo. Mas não a cantar. Conhecer o mundo como um homem vulgar que sou. Ir à deriva à Patagónia, ao Alasca, à Nova Zelândia, à Muralha da China… Isso é que é o meu sonho: pôr uma mochila às costas e fazer o Caminho de Santiago. No início da minha carreira, queria ser conhecido. Hoje não, não é isso que me move.

 

Em 20 anos de carreira, aprende-se o valor do silêncio?

Claro que sim. Saber-se estar só connosco é importante. É aí que entram as viagens. Agarrar numa carrinha e ir, só. Já consegui fazer isso, em parte, na Costa Vicentina. Devagarinho já vou parando nas praias todas: de Sagres até Porto Covo. E são as canções que me permitem isso. Por muito que eu anseie mais pelo momento em que vou conhecer o que ainda não vi do que por atingir um grande marco na música.

 

Cada vez existe uma maior tentação, ou talvez necessidade, para um artista expor o que, à partida é de uma esfera pessoal e privada. Não se vê muito da sua vida por aí, mesmo tendo “nascido” na televisão. É uma defesa?

Há três coisas que não se vendem: a família, a religião e a privacidade. O meu pai sempre me disse para “não me estender mais que as mantas”. Ele tinha razão. Para que a queda não seja grande, nunca me expus. Não quero que deem por mim e, por isso, quero apenas cumprir 40 anos de canções.

 

Porquê 40 anos?

Não quero fazer más figuras e não sei como vou estar aos 66 anos. Tudo depende da saúde que eu tiver. Acho que, 40 anos, é um número bonito e redondo. Se até lá não me faltar a criatividade e não me fartar de mim próprio… Ainda só passaram 22 anos e isso já me assusta: Será que vou ter capacidade de me reinventar? Vou escrever sobre o quê agora? Repetir o que já fiz? Não me apetece… Há um filme — “O Lado Selvagem” — todo musicado pelo Eddie Vedder, que conta uma história real, passada nos anos 1980. É um rapaz que acaba a faculdade e, quando o pai lhe diz que aquela é a altura de procurar um emprego “normal”, ele responde-lhe que não quer nada disso, quer ir em busca da liberdade, do Alasca. Esse rapaz desafiou a vida em vida. O resto não conto, vejam o filme. Vão perceber isto que digo.

 

Se só pudesse guardar uma memória de todos os momentos que viveu em Carnide, qual seria?

Ver tantas pessoas — e de tantas idades — à nossa frente, naquela noite, na Feira da Luz. Esse foi o momento.

 

Porquê?

Porque voltei a Carnide, 40 anos depois. Primeiro como criança, pela mão da minha avó. E agora… Como adulto, como um homem rodeado de gente que não me conheceu em criança, mas que veio apoiar-me. Jamais aquela criança que vinha à Feira da Luz com a avó um dia imaginou voltar com tanta gente à volta. Acho que nem no dia do concerto esperava isso. Vinha numa de criança feliz: queria rever os martelos, as farturas, os feirantes — que provavelmente, naquela altura, vinham com os seus pais e avós. Depois a noite, com tanta gente, marcou-me. De certeza que houve pessoas que viram o meu concerto e, há 40 anos, também se sentaram naquele cavalinho de madeira junto à estátua no Largo da Luz.

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