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Ângela Pinto: “O fascinante num ator é que ele toca cordas de um instrumento que não sabia que existia”

Ângela Pinto: “O fascinante num ator é que ele toca cordas de um instrumento que não sabia que existia”

Numa sexta-feira como tantas outras, sentir-se-ia a azáfama e a correria de quem traz o carro para a cidade para ao fim do dia se desligar dela. Esta não é uma sexta-feira comum. Às portas da primeira quinzena de junho, o rebuliço de uma Lisboa metropolitana começa a dar lugar à aparente paz proporcionada por quem já começa a gozar as suas férias longe daqui.

São seis da tarde e o sol continua alto. Combinámos encontrar-nos com a atriz Ângela Pinto à porta do Espaço Bento Martins, mas foi no piso mais alto do edifício da Junta de Freguesia que nos cruzamos. Ali estava a “tratar da papelada” para uma das peças que haveria de estrear dentro de dias. O tempo não espera e, quem já soma quatro décadas no ofício, sabe-o bem.

Deixa a burocracia para trás e diz que em dez minutos se junta a nós na renovada sala de exposições da autarquia. Pontual, como lhe é característico, sobe ao palco do Espaço Bento Martins, hoje não para actuar, antes para vestir a personagem que melhor a representa: atriz, mãe e lutadora. Seja pelos Direitos das Mulheres, seja pelos projetos que quer trazer à vida.

Parabéns pelos 40 anos de carreira celebrados nesta sala, no Espaço Bento Martins. Como foi esse dia?

Ainda estou a digerir. Não sei precisar há quantas semanas foi, mas ainda estou a digerir. Foi uma surpresa, tinham-me dito que iam homenagear a Mité e eu queria participar. Diziam sempre que não podia. Nestas alturas comecei a pensar que podia ser eu, mas achava logo “que disparate, não faz sentido nenhum”, “ainda sou muito nova”. (risos) Quando cheguei e vi as pessoas que estavam presentes apercebi-me logo que realmente tinha sido enganada.

Percebeu também com os olhares todos em si…

Sim, essencialmente porque estavam presentes pessoas “do lado não profissional”… Os amigos, os cúmplices de uma vida. Estou muito grata e foi muito gratificante e avassalador, um conjunto de emoções imensas e uma vontade enorme de agradecer.

Nesse dia ficamos a perceber que o mundo ganhou uma Mulher atriz, mas que o direito perdeu uma Mulher juíza que queria ser a primeira em Portugal, visto que na altura tal não era possível. De onde surgiu essa vontade de ir contra o sistema?

Vem do antecedente familiar que eu tenho de luta antifascista; não de luta política ativa. Conheci muita gente que tinha estado presa. O antifascismo sempre esteve presente na minha casa e a noção dos Direitos Humanos e das desigualdades existentes entre homens e mulheres — que eu felizmente não sentia na minha casa. Acho que a maioria das pessoas, hoje, nem sonha que as mulheres, se os maridos assim o decidissem, não recebiam os seu ordenados, eram eles que iam receber por elas. Isto estava na lei! Além disso, já tinha uma pequena atividade política num grupo revolucionário quando frequentava o Liceu D. João de Castro.

Que grupo revolucionário era esse?

Era a ASJ — Associação Socialista da Juventude. Um bracinho da quarta internacional, ou seja, eramos trotskistas. Eu era anti estalinista, convictamente. Não vou mentir, não sou uma política exímia, mas na altura muitos dos meus colegas foram para Direito e, portanto, eu tinha uma grande ligação a essa “malta”, que conhecia muito bem a realidade política da época.

Vem desse tempo a noção de equidade de direitos?

Desde cedo, ainda que intuitivamente, abracei a diferença e o direito à diferença. Além do mais também cresci com este ideal porque os meus pais não eram católicos nem religiosos. Coisas que para a época eram uma diferença acentuada. Não ter uma religião já chocava. Portanto, sinto que fui muito bem preparada pelos meus pais para isto. Outra coisa estranha para a época: sou vegetariana desde que nasci. Os meus pais eram muito “à frente”…

E eram todos vegetarianos lá em casa?

Sim, mas sempre sem fundamentalismos. Os meus pais tomaram esta decisão porque achavam que era o melhor para nós. Porque tinham tido alguns problemas de saúde e consultaram um naturista na altura: o Indi Vero Colutchi — um grande médico naturista que se radicou em Portugal e com quem os meus pais fizeram diversos tratamentos. Ora ele, sendo vegetariano, viveu até depois dos 100 anos e, portanto, os meus pais achavam que aquilo era uma coisa maravilhosa. Assim optaram por seguir esse regime.

Voltando ao grupo revolucionário do Liceu… Por que é que não ficou pela política?

Nunca entrei no partido porque eles achavam que eu era muito anarquista. Nunca fui de “carneirada”, sempre fui de pensar pela minha cabeça, sempre muito sonhadora. Lembro-me de estar em reuniões dessa associação e dizer “este candeeiro pode ser uma árvore para mim”. Todos questionavam e eu dizia “se na minha cabeça for uma árvore, é uma árvore”. Isto quando tinha 15 anos e estava quase a acontecer o 25 de abril. A costela artística sempre esteve cá e tive meios para a fazer crescer. O “à vontade” e o carinho da família também permitiram que ela crescesse. Mas é meu, nenhum dos meus irmãos enveredou por esta vida.

Ia-lhe perguntar exatamente pelos seus irmãos. Nestes momentos de convívio e tertúlia, os seus irmãos estavam presentes ou por ter sido a mais nova acabou por experienciar coisas diferentes?

Eles também estavam presentes. Crescemos todos com isso. Talvez eu até tenha vivido menos experiências do que eles porque, com o 25 de abril, muita coisa mudou. Passamos a estar mais na rua, a haver menos reuniões em casa. Mas, até essa idade, lembro-me de ser pequenininha e a minha mãe não me deixar ir para a sala porque já era muito tarde os meus irmãos tinham uma idade ótima para ouvir essas coisas. Apesar do aviso, eu fugia da cama para espreitar e assistir a essa tertúlias, onde havia cantores por exemplo. Todos assistimos a isso, em casa dos meus pais na de amigos deles. Até porque antes do 25 de abril tinha mesmo que ser de “casa em casa”.

Ponderou ser bailarina. Chegou a estudar e a pensar conciliar os estudos de atriz com a dança?

Sim. Foi o sonho. Foi a minha grande decisão de vida; foi quando acabei o 7º ano na altura (que não acabei, fiquei com filosofia por fazer e com outra cadeira que já não me lembro). Comecei depois a pensar naquilo que queria fazer e sabia que era teatro ou dança. Queria o conservatório e convenci os meus pais. Tinha ali um ano em que podiam não me chamar para o serviço cívico e tinha a cadeira de Filosofia por fazer. Então, enquanto tinha explicações e esperava para que me chamassem para o Serviço Cívico, convenci os meus pais a ir para o conservatório: “para ter alguma coisa para fazer”. (risos)

Foi uma decisão que lhe mudou a vida…

Foi a grande decisão da minha vida. Candidatei-me à dança e, de facto, tinha aptidão. Sei que podia ter sido bailarina; fui aluna da Anna Mascolo (uma grande professora e bailarina que achava que eu tinha potencial. Passaram-me aos 18 anos, o que é muito difícil para uma rapariga entrar com esta idade, porque tem que se começar muito antes).

Ficando ainda em casa, a sua irmã Maria Luís é professora. O que aprendeu com ela?

Uma das coisas que ela me deixou foi a palavra e a poesia. Lá em casa todos gostávamos de poesia e eu comecei por ler poesia antes até de ler romances. Tínhamos livros de poesia por todo o lado. Conhecia Florbela Espanca de cor com 10 ou 12 anos. A minha irmã dizia-me poesia para eu adormecer e isso foi das coisas mais fortes que ela me deixou. Foi minha mentora — quase uma segunda mãe por ter mais 10 anos — mais rígida do que a minha mãe em algumas coisas, chamamos-lhe o general. Aprendi imenso com ela e com o meu irmão. Sou-lhes muito grata. A minhã irmã não me lia poesia infantil, lia-me Álvaro Feijó, Fernando Pessoa, … “Era uma vez um rei lá na Judeia…” e se continuar ainda sei de cor porque ouço-a desde pequenina. Ela lia-me os textos para dormir, mas na verdade eu não dormia, ficava ali a pensar.

Com essa idade já percebia a intenção por trás desses textos…

Não sei se percebia a intenção exata deles. Acho que há alguns que percebi mais tarde, como o “Nossa Senhora da Apresentação” do Álvaro Feijó, que inclusive é dos que me lembro da minha irmã me dizer. Era uma coisa terrível. Não sei exatamente o que percebia, mas algumas das coisas que me eram lidas falavam de fascismo e, no fundo, este tipo de textos vinham denunciar a extrema pobreza em que se vivia em Portugal naquela época. Disso, de facto, acho que não tinha a completa noção. Mas este bocadinho de que me lembro da “Nossa Senhora da Apresentação” — de não ter pão nem leite para dar ao menino — sei que foi ficando na minha memória.

Como é que a mente de uma criança pinta estas imagens?

Eu tinha muita imaginação. A minha mãe dizia: “estou sem dinheiro, vou ao banco”. Eu ficava a chorar em casa, porque a minha mãe não tinha dinheiro e eu pensava que ela tinha ido para o banco de jardim pedir dinheiro. Só que eu não dizia nada à minha mãe, chorava sozinha e ficava ali num drama monumental. Sempre fiz muitos filmes na minha cabeça e não falava sobre isso. Depois via a minha mãe chegar da rua e pensava “pronto, a coisa resolveu-se” (risos). Hoje em dia, penso em certas coisas e não entendo o que é que eu tinha na cabeça naquela altura; mas tinha já aqui um mundo imaginário a funcionar.

Alguma vez a imaginação lhe trocou as voltas?

Uma vez desmaiei de emoção a ver um espetáculo no São Carlos, um bailado. Ainda me lembro da imagem: era um pássaro maravilhosa, era uma mulher (bailarina) com umas grandes asas a dançar, e de repente fica presa dentro de uma gaiola e já não pode dançar e eu desmaiei (risos). Estávamos num camarote. A minha mãe tirou-me de lá muito rápido e levou-me para os corredores para os corredores. Pôs-me água na cara para me acordar.

E a sua mãe, que privilégio é tê-la a seu lado a assistir aos seus trabalhos ao longo destes 40 anos de carreira?

Ela viu tudo, todas as estreias. Ela e o meu pai (enquanto cá esteve) assistiram a tudo. É um privilégio, sobretudo porque demonstra o amor e o apoio da família, que está sempre lá para mim.

Nestes 40 anos de carreira, qual foi o conselho mais sábio que a sua mãe lhe deu?

A minha mãe ainda hoje tem uma lucidez absolutamente fantástica e ensina-me todos os dias. Não dá propriamente conselhos. Conversamos muito, falamos abertamente e temos uma cumplicidade muito específica e muito grande desde sempre. Ela preocupa-se sempre muito com a minha autoestima, ajudou-me muito a ter confiança em mim, sem dúvida nenhuma. Sei que a minha mãe foi importante para eu acreditar no que estou a fazer. Depois, o meu pai era extremamente inteligente e não era uma pessoa de elogios. Lá em casa, fomos habituados a ter que lutar para sermos bons. O normal seria ser-se bom e fazer-se bem. Fazer-se bem feito e sempre com a noção de que se podia sempre fazer melhor. Só muito tarde é que [o meu pai] me disse que me “tinha safado” quando lhe perguntei o que tinha achado de uma estreia. Nunca eram grandes elogios. Vivi numa época com mais “espaço” para crescermos, para criarmos…

Para errar também? Acha que hoje as pessoas são mais expostas mais novas?

São. Hoje há muito mais diversidade e eu fui, se calhar, sa primeira geração que começou a fazer televisão e teatro sem qualquer tipo de autojulgamento. Houve muita gente que, durante muito tempo, dizia “o teatro é que é a génese, eu não vou fazer televisão porque isso é péssimo”. Mas acabaram todos lá. ou um bocadinho a geração que teve esta oportunidade de ir experimentando tudo. Eu fiz primeiro televisão, enquanto estava ainda no conservatório. Talvez por isso tenha percebido logo que era um meio de trabalho como outro qualquer.

Havia mais espaço para errar nessa altura?

Hoje há muito mais lóbis, que é terrível e triste. Quarenta anos depois do 25 de abril, o nosso meio está muito mais fechado. A minha geração foi a geração completamente cilindrada, daí eu dizer que tenho muito orgulho nestes meus 40 anos, sem qualquer tipo de modéstia. Não gosto nada da modestiazinha e do ser-se humildezinho; não sou. Não sou vaidosa, de todo, mas não sou humildezinha e depois dos 60 anos também ficamos assim, dizemos tudo o que pensamos.

Como é que os lóbis de que fala influenciam a profissão de atriz?

O que acontece agora em termos de oportunidades — e isto tudo para chegar aqui: o mundo das artes é muito complicado porque é muito pequeno. Não é só no teatro que isto acontece. É no teatro, nas artes plásticas, na música — onde os lóbis são brutais. Durante muito tempo o [Teatro da] Trindade convidou-me várias vezes e fui trabalhar com eles mesmo já tendo a minha companhia na altura; depois, nas minhas companhias sempre convidei pessoas de outras para projetos connosco. Eu acho que a arte é isso. Não tenho nada aquela ideia de “quintinha fechada” e acho que a malta nova está mais interessante.

Independentemente da geração e do meio em que se faz arte, seja no teatro, seja na televisão, o que é preciso para se ser uma boa atriz ou um bom ator?

Primeiro: talento, sem dúvida nenhuma. Mas tem que ser o talento que se sente, ou seja, aquilo que nos chama e nos diz “é isto que eu tenho que fazer”. Não podemos ir com o pensamento “ah, eu quero é aparecer numa capa de revista” — isso nem existia no meu tempo. Hoje em dia alguns começam com este pensamento errado: querem primeiro a fama, como se isso fosse um estatuto ou uma profissão. Eu costumo dizer que eu sou atriz porque eu tinha que comunicar, e podia ter sido com a dança, mas eu tinha era a necessidade intrínseca de comunicar; nunca foi pela ideia de estar em cima de um palco.

Sempre lhe foi confortável falar para quem a estivesse a ver ou a ouvir?

Sempre gostei foi muito de câmaras desde pequenina. Eu e uma amiga costumávamos tirar fotos já vestidas disto e daquilo. Era muito miúda, mas eu fotografava-me. Tinha esta necessidade de querer comunicar e, quando punha um personagem em cima — uma roupa, um disfarce — ficava muito mais à vontade para dizer e fazer coisas.

Voltando ao que é preciso para se ser um bom ator. Há mais para lá do talento?

Muito trabalho, trabalho, trabalho e trabalho. Não há um bom ator ou um grande ator sem trabalho. Não acredito. Há coisas que às vezes nos saem bem à primeira e que fazemos mais intuitivamente, há outras que não — e eu não sou uma atriz de pensar muito e de ser muito analítica, costumo procurar o meu personagem nas pessoas todas que vejo. Se for um personagem histórico é diferente, há um trabalho mais intelectual. Mas um ator tem que ter a tal chama, muito trabalho e, neste país, muita capacidade de resistência e resiliência.

Desde que começou, já vestiu inúmeras peles e personagens, em televisão e cinema, que segundo as minhas contas totalizam 83 projetos. Só em teatro foram mais de 60 peças. Tenho comigo a lista desses projetos. Vou-lhe dar o tempo que precisar para olhar para todos eles.

(riros) Nem tinha ideia… É muita coisa realmente!

De todas essas personagens qual é a mais próxima Ângela?

Essa pergunta não se faz! (risos) Não sei, é uma coisa muito difícil. Eu nunca fiz nada muito próximo de mim, é engraçado. É uma pergunta tramada. Eu empresto sempre muito de mim às personagens, mas nunca sou eu, de facto.

Isso deixa-a mais confortável? Mais tranquila?

(risos) Na distância ninguém sabe o que é meu e o que é do outro. Mas, por exemplo, a peça “Coisas de Homem” foi uma coisa que eu quis muito fazer. Uma das peças com a qual sou muito próxima daquilo que me apeteceu dizer, ainda que, felizmente, [a trama] não tenha a ver comigo porque nunca fui vítima de violência doméstica. “Coisas de Homem” tinha um texto absolutamente brutal que eu andei a querer fazer durante anos. Foi em 2012, portanto quase há 10 anos. Andei atrás de meios para produzir aquilo durante anos. Era uma coisa que eu sabia que não era muito fácil de produzir, também porque não era algo para o grande público. Ainda assim estivemos a esgotar salas antes do confinamento, na Sala Estúdio do [Teatro da] Trindade.

Continua a percorrer os personagens dessa lista…

Não há nenhum personagem que seja eu, é engraçado. Eu fiz muitos trabalhos em que me pus inteira e as coisas ficaram quase “naturais”. O fascinante num ator é que ele toca cordas de um instrumento que não sabia que existia, que é o ser humano, que somos nós, que é perceber o que é e quem é o Outro. Eu a dada altura, depois do Direito, ponderei ir para Psicologia, mas a verdade é que sendo atriz acabei por ter os meus próprios caso clínicos (risos).

Do que precisaria um personagem para representar “a Ângela” em palco?

O que eu digo sempre é que sou atriz intrinsecamente. Para mim, eu sou atriz e nunca fiz o papel de uma atriz. Talvez seja por isso que não me revejo completamente em nenhuma destas personagens. Claro que me revejo em vários pontos de algumas personagens. Eu sou uma dramática naturalmente e, portanto, muito do drama que ponho nos meus personagens foi a minha terapia. Extravasei em muitos personagens dramáticos. Acho que era uma maneira de sublimar as dores do mundo e as dores que sentia com as injustiças do mundo.

É uma pergunta incrível, de facto porque quando eu olho para isto tudo não me revejo. Nenhum destes personagens sou eu. Mas, seguramente, muitas têm muitos pontos de contacto comigo. A ‘Mindinha’ da Terra Brava tinha muita coisa minha, mas continuo a não ser eu, de todo. Outras têm alguma da dureza de quando decido cortar a direito. Todas elas têm qualquer coisa de mim, vou buscar ali um bocadinho, mas depois tenho que ver o que é que tenho que fazer crescer aqui e ali.

Perfecionista por vocação?

Adoro trabalhar a perfeição. Sei que não existe, mas tentá-la… Gosto muito da preparação, ainda que goste mais de estar em palco com a personagem. É em palco que pode acontecer tudo, e isso fascina-me. Com a idade começa a assustar, a responsabilidade é cada vez maior.

Depois de tantas personagens, essa questão da permeabilidade, do saber ter que ir tocar em cordas que não sabia que eram passíveis de serem tocadas… o não julgamento que é preciso fazer para vestir tantas personagens diferentes estende-se à vida também? Esse olhar cru do mundo estende-se à vida?

Eu acho que sim. Para mim sim. Para já eu não dissocio o meu trabalho de atriz da pessoa que sou. E depois o aprendermos sobre o ser humano também nos leva a ter outro olhar sobre as pessoas, a sermos mais tolerantes; e eu cada vez mais acho que o bom senso e a tolerância são valores absolutamente necessários; não ser intransigentes. Eu era muito intransigente, em nova. Não sei se era a ideia que vem do Direito, de que as coisas “ou são assim, ou são assim”. Só depois aprendi que o Direito não é tão intransigente quanto parece. Eu era muito intransigente com as pessoas que não eram exigentes consigo mesmas, porque eu era muito [exigente], tinha-me sido incutido em família. Ser bom não chega, ser-se bom é apenas o normal.

Como é que essa forma de ver a vida a levou até às artes e como é que a moldou enquanto atriz?

Eu tinha muita necessidade de apresentar as melhores notas lá em casa e às vezes não dava. Não era feliz a estudar a quantidade de coisas que ainda hoje te põem à frente. Então fui procurar onde me sentiria na minha praia. Quando isso aconteceu, uma vez mais, tornei-me exigente comigo, com os meus pares. Mas coisas que não se prendem com a profissão, mas com os detalhes, o chegar a horas… era muito chata às vezes.

E hoje?

Hoje sou muito menos intransigente. Aprende-se a saber ouvir o outro. É uma das coisas que a experiência traz.

O que pensa quando olha para a atriz que era no início, intransigente, sabendo que anos mais tarde seria alguém diferente, mais aberto ao outro?

Valeu a pena. Os textos que eu conheci, os autores que tive que ler e conhecer também para chegar aqui… Isto é um trabalho fascinante e sem fim. Pode-se ser ator até morrer. É absolutamente maravilhoso. Conhecemos muita gente, gente diferente. Por isso também gostei tanto de ter entrado em várias companhias, ter tido convites para trabalhar com outras pessoas… Cada uma traz-nos algo diferente, outras visões.

Os personagens que constrói certamente também…

Claro. Perceber por que é que há mulheres que se deixam pisar, por que é que há outras que se comportam com grande violência face a outras pessoas… Acho que isso me acrescentou imenso e espero que continue assim todos os dias.

E agora, depois de olhar para (quase) todas as personagens que fez, como é que se sente?

Sinto-me bem. Acho que ainda não fiz tudo o que queria e, para alguns desses personagens a idade já passou. Estou muito tranquila com isso. Sinto-me uma privilegiada, embora saiba que lutei por isto, sinto-me bem comigo. Nada foi de mão beijada. Lutei por fazer aquilo que gosto, a vida toda.

Foi também essa uma das razões para ter sido homenageada…

Esse é o lado bonito da homenagem. Ter havido alguém que me deu esse reconhecimento. Nesse dia, aqui mesmo, em cima destas tábuas, disse a quem estava na sala que se eles acham que eu mereço, quem sou eu para dizer o contrário. A minha primeira vontade seria dizer que há outras tantas atrizes que nunca foram homenageadas e que mereciam tanto ou mais que eu. O privilégio é ter tido alguém cujos olhos viram que eu merecia isto.

Em algum momento pensou mudar de vida?

Em momento algum. Mas eu percebo quem o tenha feito, até por circunstâncias da vida. Quando digo que lutei por “isto” falo não só do trabalho que tive, mas sobretudo dos momentos em que não havia trabalho nenhum. Resistir e nunca baixar os braços é algo que vem daquele lado afetuoso e emocional da família e sei que foi essencial para conseguir não mudar de carreira como muitos colegas da minha idade fizeram. Foi essa capacidade que me permitiu fazer loucuras como levantar projetos sem ter dinheiro, fazer peças de teatro sem investimento, fazer cafés-teatro…

E é assim que se resiste, mostrando que se continua de pé…

É assim que se resiste, sim. Na minha geração era, pelo menos. Acho que as coisas agora estão diferentes, por isso eu digo que havia muito espaço para fazermos coisas. Eu inventei tanto, tantos projetos marginais com tanta gente. E agora percebo que fiz isso pela minha sobrevivência, enquanto ser-humano que precisa de se expressar, de comunicar, de fazer teatro. Preciso de representar para estar viva, para ser feliz. Sempre lutei por isso, por ser feliz.

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