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Isabel Vieira: “Estamos mais consciencializados para a insustentabilidade dos nossos estilos de vida”

Isabel Vieira: “Estamos mais consciencializados para a insustentabilidade dos nossos estilos de vida”

A braços com um novo ano e com o início de uma década que não se faz esperar, pode este ser o melhor momento para refletir sobre a crença nas pessoas, na capacidade que cada um tem de mudar o mundo, começando na sua rua.

Isabel Vieira é Professora na Universidade Católica Portuguesa. Com uma extensa carreira dedicada à Ação Social quer como docente, quer como voluntária ou assistente social em diversos projetos locais, ainda mantém a esperança naquilo que cada um é capaz de fazer em comunidade, por um mundo melhor.

É fácil acreditar num futuro onde possamos viver em igualdade de circunstâncias e oportunidades?

Um futuro assim começa no presente. Nem sempre é uma tarefa fácil, mas é possível. Há que perceber que face à contemporaneidade, em que o modelo capitalista dominante a nível mundial, temos de inventar uma nova forma de ser sociedade, de ser planeta, de ser comunidade, de ser mundo. Se não, não há caminho. E mesmo que essa sociedade mais democrática e igualitária seja uma utopia, sem ela não há caminho. A utopia é esse visualizar de um cenário que, para nós, é desejável e para o qual vamos caminhando.

De que forma é possível trazer parte dessa utopia à realidade?

Olhando para trás. Eu costumo dizer aos jovens que o telemóvel está inventado há cinquenta anos, mas não tinha cabimento na sociedade de então. Só quando se tornou resposta a uma necessidade teve lugar. Isto para dizer que, hoje, já temos aquilo que precisamos para a sociedade que queremos que tome lugar daqui por cinquenta ou cem anos. O desafio é construí-la onde estamos, com as pessoas de quem estamos mais próximos, na comunidade. Os construtores da sociedade e das relações entre cada um somos nós.

Apesar disso, há poderes dominantes…

Claro. Poderes que estão ancorados no individualismo e no máximo lucro. Mas também temos experiências em vários lugares, inclusivamente em Portugal, de comunidades que se tornaram mais agregadoras, altruístas e ecológicas. Não aparecem na comunicação social, mas existem.

Há alguma razão para não se dar voz a essas experiências?

Nós vivemos numa sociedade controlada pelo grande capital, em que os Estados e os governos perderam autonomia e o controlo dos seus próprios destinos. Hoje, vemos que programas governamentais serem traçados obedecendo a grandes grupos financeiros. Sejam eles uma TROIKA, um Banco Mundial, um Banco Social Europeu… Quando percebemos que andamos a favor das suas políticas, percebemos que a lógica social é desses grupos. Nesse sentido, também as notícias acabam por ser monopolizadas por empresas onde algum grupo económico está representado. E depois, o sistema é sempre mais veloz do que a nossa mudança.

Cada vez mais se veem ações de “solidariedade” serem expostas por esses grandes grupos económicos de que fala. Será solidariedade realmente, ou uma nova forma de marketing no século XXI?

Muitas vezes, sim. Quando falamos de responsabilidade social empresarial estamos a falar da forma como as empresas atribuem parte dos seus dividendos a causas. O que é corrente, a nível mundial, é termos empresas com planos anuais onde alocam determinadas verbas a solidariedade. Como esses planos são analisados e classificados publicamente, acaba por se tornar uma ação de marketing.

Pode classificar-se esse marketing como “certo” ou “errado”, ou é simplesmente algo orgânico?

Quer o certo, quer o errado mudam de sede consoante o paradigma que escolhemos. Há muitas coisas em que precisamos de ser objetivos, e outras em que devemos ser mais subjetivos. Se eu tiver que atribuir um subsídio a uma pessoa que, por mais um euro, o perde, na minha subjetividade consigo perceber que seria uma injustiça retirar-lhe o subsídio. Agora, que essa responsabilidade social não ultrapasse a barreira daquilo que é ético: a dignidade humana, a transparência, o direito à palavra e, sobretudo, o direito de todos a fazer parte do bem comum.

Até porque, atualmente, o consumidor tem acesso a muita informação…

Sim. Muitas vezes até a informação sobre como são produzidos os produtos de determinadas empresas. Também por isso, hoje assistimos a uma preocupação maior por parte das empresas em cumprir planos de justiça social, com base na dignidade humana e no papel que desempenham na sociedade. A minha geração não cresceu a ler os rótulos das embalagens, hoje há essa preocupação quase fiscalizadora por parte dos jovens.

No Brasil, por exemplo, a MÍDIA NINJA — projeto independente de crowdsourcing formado por uma rede de pessoas que contribui com peças jornalísticas — que transmitiu em direto os protestos em São Paulo, em 2013, quando nenhuma televisão parecia querer mostrar o que se passava realmente nas ruas. É um exemplo de rutura com o monopólio de que falávamos há pouco. Acha possível que este “romper” das amarras seja extensível a outros campos da sociedade?

É inevitável. Vivemos na sociedade das redes. Mas se analisarmos com pormenor, não são os meios ou as ferramentas que definem os fins, é a nossa consciência. Depende de nós vigiarmos os tais valores e princípios de que não queremos abrir mão. Quando acontece uma greve de enfermeiros financiada por um centro financeiro que ninguém conhece… Há que duvidar de uma greve sem rostos. A greve é justa, mas quando deixamos de ter trabalhadores a reivindicar melhores condições para apenas ficar em casa porque aquela força económica vai pagar-lhe o dia… Estamos a inverter os princípios. É a esses valores que nos devemos manter atentos.

Fala-se muito da economia circular como voto de esperança na construção de comunidade firmes e resilientes. Antes de mais, o que é uma economia circular?

Partindo daquilo que são os objetivos do desenvolvimento sustentável, como é que a economia pode estar focada nas pessoas e ter preocupações ambientais. Acaba por tornar-se fulcral perceber como é que aquilo que até aqui era apenas desperdício pode passar a reintegrar a cadeia de produção sem desgastarmos mais a Natureza e os recursos que produzimos.

Acha que hoje falamos mais desta necessidade de não esgotar recursos por estarmos a viver o tempo em que há calotes polares a separarem-se no Ártico ou em que, do nada, mais de metade da Austrália foi consumida por fogos?

Estamos mais consciencializados porque percebemos que as contradições do sistema onde estamos integrados se tornaram insustentáveis. Quando falamos de uma sociedade de risco, falamos destas falhas que cada vez são menos previsíveis. Acreditávamos, há uns tempos, que a ciência era capaz de prever e dominar a Natureza. Cada vez mais, a forma como destruímos o planeta torna o processo muito mais imprevisível e põe em risco a sobrevivência do Homem. Aliás, há estudos recentes que provam que esta migração de refugiados está relacionada com as alterações climáticas que estamos a viver.

De que forma?

Os ecossistemas onde os povos tradicionais tinham os modos de vida que lhes permitiram sobreviver, ao serem destruídos levam essas comunidades a reintegrar a sociedade numa realidade completamente diferente. Basta que sejam obrigados a integrar grandes cidades onde têm vidas completamente opostas ao que estavam habituados. Para que seja possível todos termos a tal igualdade de circunstâncias de que começámos por falar, era preciso não termos o estilo de vida que temos hoje.

Pouco mais de 3% da população mundial anda de avião e, ainda assim, são esses 3% que impulsionam uma das formas de mobilidade mais devastadoras que existem hoje. Será fácil mudar os hábitos de uma fatia tão pequena da população mundial?

Nada é fácil, mas chegámos a um ponto em que temos de mudar a forma como vivemos. Há um brasileiro que diz que “a Natureza vai varrer a Humanidade como nós varremos a casa como jatos de água e uma vassoura”. Nós somos o elo mais fraco e, por isso, vemos cada vez mais calamidades. Não temos de ser catastrofistas, mas devemos perceber aquilo que cada um pode fazer por um mundo melhor sem sair do meio em que vive. Eu costumo perguntar aos meus alunos se alguém sabe como se fez a calçada da Rua Augusta, que começou com um calceteiro a por uma pedra apenas à qual depois se juntaram todas aquelas que hoje pisamos. E nós também vamos fazendo calçadas para que outros possam passar nos caminhos que estamos a construir. O que comemos ao pequeno-almoço, que roupa vestimos, como utilizamos os nossos transportes, como partilhamos as nossas coisas… Tudo isso importa no final.

De forma prática, qual é o primeiro passo a dar para um melhor amanhã?

Podemos mudar primeiro as pequenas coisas. Se calhar já não dizemos “bom dia” ao vizinho do lado, e era importante. Dar o lugar do autocarro à mãe que tem um bebé ao colo e à pessoa idosa. Não ter vergonha de apanhar o saco de plástico que estava no chão. Em Carnide, por exemplo, eu vejo que há muito mais ecopontos e população a usá-los. Quando no Bairro da Horta Nova se começou a reciclar garrafas de vidro, eram uns rapazes de uma associação que iam, porta a porta, pedir que lhas dessem para eles deixarem no ecoponto, uma vez por semana. Até que as pessoas começaram a dizer “não, deixa estar. Eu levo”. Hoje, na Horta Nova, já se recicla tudo o que pode ser reciclado. Se olharmos para trás, percebemos que tudo começou com um pequeno gesto. Há muito que podemos fazer, todos os dias.

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