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Teresa Pestana Gonçalves. “Quando já se viveu o que eu vivi, percebe-se que o mundo vai ser diferente.”

Teresa Pestana Gonçalves. “Quando já se viveu o que eu vivi, percebe-se que o mundo vai ser diferente.”

No final de uma tarde de Agosto, as sombras das árvores são o único sítio calmo e agradável para uma conversa longe do mundo, no centro da cidade. Foi numa dessas sombras, no Largo das Pimenteiras, em Carnide, que nos encontrámos com a Dr.ª Teresa Pestana Gonçalves. Durante pouco mais de meia hora, pôs-se de lado os telefonemas que haveriam de chegar e os oito e-mails que deixou por ler. Uma vitória para a Delegada de Saúde e Coordenadora da Unidade de Saúde Pública de Lisboa Norte que, nos últimos seis meses, recebeu dezenas de milhares de notificações à conta da pandemia provocada pela COVID-19.

Antes de mais, posso estar a generalizar, mas acho que o que lhe vou dizer reflecte o sentimento da maioria das pessoas que a Doutora serve: Obrigado, pelo seu trabalho e de toda a sua equipa nos últimos meses.

Ouviu alguma das noites em que o País veio à janela bater palmas em jeito de agradecimento aos profissionais de saúde?

Ouvi. Normalmente era às 22 horas e era também a essa hora que chegava a casa. Se bem que houve dias em que isso aconteceu e ainda nem estava em casa.

O que sentiu nessas alturas?

Senti que estava a fazer bem o meu trabalho e que era algo visível a toda a gente, pelo menos nesta altura. O meu trabalho e o de toda a equipa da Unidade de Saúde Pública do ACES Lisboa Norte. Sempre foi um trabalho “nosso” que, muitas vezes, no dia-a-dia antes da pandemia, não era visível.

 

Acha que a situação em que vivemos veio reforçar, junto da sociedade, a importância do Serviço Nacional de Saúde?

Dado os anos que o SNS já leva, acho que a população tem-lhe imenso respeito. O que sinto mais, nesta pandemia, talvez seja o reconhecimento e a descoberta até da figura do médico de saúde pública. Esse é o meu trabalho há 125 anos [risos] e nunca fomos tão falados na televisão e mesmo pelas pessoas no dia-a-dia. Somos um grupo pequeno — e agora veio perceber-se que há falta de médicos de saúde pública — mas de quem o trabalho é reconhecido e isso faz-nos bem. Só dessa forma conseguimos continuar a trabalhar como estamos hoje, muitos de nós sem termos ainda conseguido parar [desde o início da pandemia].

 

Estamos a 18 de Agosto. O primeiro caso de Covid-19 em Portugal foi diagnosticado a 2 de Março. 169 dias a lidar com o vírus em Portugal. Como foi o seu regresso a casa no final de cada um dos últimos 169 dias?

Sempre depois das 20 horas, mais tarde do que antigamente. O que mais custou foi chegar a casa e perceber que tinha passado mais um dia igual ao anterior. No início, os primeiros casos conseguiam ser geridos. Mas depois, a subida para o pico [de número de casos], tornou-se numa loucura a quantidade de telefonemas e de e-mails a que não conseguíamos dar resposta atempada. O dia não tinha horas suficientes para responder a todas as solicitações. Isso era duro. Custava fisicamente e era uma angústia termos deixado pessoas sem respostas. Foram e ainda estão a ser dias pesados.

 

Somos apenas humanos, há que não esquecer isso. Sobrava-lhe algum tempo para si?

Muito pouco. Felizmente tenho uma filha já crescida e que não precisa de mim. Ainda assim, tenho família que precisa e sei que, neste tempo, não lhes dei aquilo que eles merecem… Mas eles percebem.

 

Para quem não sabe, quais foram e quais são actualmente as suas responsabilidades no contexto em que vivemos?

Uma das funções do médico de saúde pública é a vigilância epidemiológica das doenças transmissíveis, que são contagiosas. Assim que é diagnosticada essa doença na comunidade, é submetida a notificação no SINAVE — uma plataforma nacional da Direcção-Geral da Saúde para o controlo das doenças transmissíveis. O médico de saúde pública, recebe um e-mail assim que é diagnosticada uma suspeita destas doenças no seu ACES (Agrupamento de Centros de Saúde) e apartir daí tem de fazer um inquérito epidemiológico. Isto significa que temos de contactar a pessoa e perceber como começou a doença, seja ela a COVID-19 ou qualquer outra doença transmissível.

 

Como foi o rácio entre os e-mails que recebeu com notificações sobre a COVID-19 versus outras doenças?

Secalhar, caíram tantos e-mails sobre COVID-19 este ano como de todas as outras doenças juntas em anos anteriores. É por isso que a função do médico de saúde pública, com a COVID-19, se hipertrofiou. Com certeza houve mais e-mails do que os casos que depois se vieram a confirmar. Basta que haja uma suspeita para ter de se realizar um inquérito epidemiológico.

 

Em que consiste o inquérito?

Fazemos várias perguntas, tentamos perceber onde aquela pessoa foi contagiada para estabelecer uma correlação com outras pessoas. A certo ponto, identificamos uma cadeia de transmissão que, se conseguirmos cortar, travamos a multiplicação daqueles casos. Há várias coisas a saber sobre essa pessoa: onde esteve, com quem esteve, quais foram as pessoas com quem esteve que não estavam protegidas. Além disso, depois há que fazer o rastreio de todas as pessoas que estiveram em contacto com aquelas que tinham contactado inicialmente com ele.

 

Em média, quanto tempo demora a identificação de uma cadeia de transmissão?

Tentamos ter essa informação em 24 horas. Quanto mais rapidamente forem feitos os contactos, mais depressa colocamos essas pessoas em isolamento [durante 14 dias]. Até porque muitas das vezes há pessoas que ainda nem deram conta que estiveram em contacto com alguém que testou positivo [à COVID-19]. Agora que o número de casos é mais baixo, já conseguimos identificar cadeias de transmissão no próprio dia.

 

Quantas pessoas tem a equipa que fez e que continua a fazer esses contactos?

Somos quatro médicas de saúde pública, duas enfermeiras da Unidade [de Saúde Publica Lisboa Norte] e mais três enfermeiras de outras Unidades. Estão também quatro higienistas orais e outros profissionais de saúde que trabalhavam, por exemplo, na saúde escolar e que agora foram deslocadas temporariamente para nos ajudar.

 

Existe acompanhamento para os casos activos de COVID-19?

Sim, é a chamada vigilância sobreactiva. Como é uma vigilância clínica, é feita pelo médico de medicina geral e familiar, embora os contactos sejam feitos pela saúde pública.

 

Acompanha diariamente a população de Carnide, os números e as vidas. Como é que se zela por uma comunidade como esta?

Zela-se tendo sempre em conta que a vida daquelas pessoas dependerá sempre daquilo que eu e a minha equipa lhes conseguirmos transmitir. Muitas vezes é difícil fazer com que uma pessoa veja que, mesmo sem sintomas, se testou positivo [à COVID-19], tem de ficar em casa durante 14 dias. Fazer com que as pessoas compreendam a importância de tomarem uma atitude responsável é fundamental para conseguirmos travar a disseminação da doença.

 

Como têm respondido as pessoas aos vários apelos que foram sendo feitos? Para que ficassem em casa, para que cumprissem o distanciamento social, …

Nós temos êxito porque não estamos sozinhos a fazer os contactos às pessoas. Trabalhamos com as várias entidades junto da comunidade: Juntas de Freguesia, Santa Casa [da Misericórdia de Lisboa], … Se há algo que, com esta pandemia, conseguimos perceber é que a relação que tínhamos com estas entidades e o trabalho articulado que já fazíamos foi muito importante. É sempre mais fácil trabalhar com quem se conhece.

 

Dos contactos feitos, houve casos complicados?

Houve quem tivesse desligado o telefone, quem não quisesse saber da responsabilidade que tinha na sociedade neste momento particular. Mas são residuais. A grande maioria das pessoas, felizmente, percebe o nosso trabalho. Estamos todos nesta “guerra”.

 

O passar do tempo foi ajudando?

Sim, se bem que, às vezes, quando vemos grupos de pessoas sem máscara ou qualquer cuidado… Isso assusta. É nestas pequenas interacções que as transmissões se fazem.

 

Estamos a relaxar depressa de mais?

Pois, às vezes tenho essa sensação. Claro que as pessoas estão cansadas de estar em casa e precisamos de sair para trabalhar também, as aulas têm de recomeçar. Se não, a economia vai ser tão ou mais devastadora que a COVID-19. Mas assusta pensar na abertura das escolas e do comércio quando vemos pessoas que ainda não têm consciência de que a máscara é algo que devem usar todos os dias.

 

Estávamos preparados para integrar no dia-a-dia tudo o que hoje é obrigatório para vivermos em segurança?

Nunca estamos preparados. Tenho visto poucas notícias ao longo destes meses, mas daquilo que me apercebo é que, qualquer País, por muito desenvolvido que seja, ninguém estava preparado para uma pandemia com as dimensões daquela que estamos a viver. Cada um de nós tem de continuar a aprender o que é preciso fazer no dia-a-dia para ficar preparado. E isso estende-se ao olhar e aconselhar os amigos, a família, o vizinho. É uma responsabilidade de todos nós. Se só meia dúzia de pessoas tiver esta consciência, não conseguimos. Ao mesmo tempo que tenho receio pela abertura das escolas, também sei que é nas escolas que se aprende muita coisa.

 

Será mais fácil levar esses hábitos da escola para casa?

Há sempre essa possibilidade. Vai ser muito importante para os mais novos, que passam mais tempo na escola do que em casa. A escola que eles deixaram no ano lectivo 2019/2020 já não é a mesma que vão encontrar agora em Setembro. Vai fazê-los pensar e aprender coisas diferentes. Vão perceber que para brincar não é preciso estarem agarrados, que para gostar de outras pessoas não têm de abraçar ou estar “aos beijinhos”… Vai ser uma mudança de hábitos paulatina.

 

Vai ser uma geração diferente de todas as que existiram até agora…

É um mundo diferente. Quando já se viveu o que eu vivi, percebe-se que o mundo vai ser diferente.

 

Disse que não viu notícias nos últimos meses. Foi uma decisão sua?

Não. Chegava a casa tarde e preferia ver um filme ou uma série policial. No fim-de-semana lia [jornais] semanários e ouvia o que a família tinha para contar.

 

No fundo, a Doutora viveu na primeira pessoa tudo aquilo que foram as notícias nos últimos seis meses.

Exacto. Não via notícias não para lhes fugir, mas antes para sair um bocado daquilo que eram os meus dias. Mudar de paisagem.

 

Houve algum dia em que tivesse sentido que havia condições para se ter feito mais?

Num computo geral, acho que não. Nesta actividade da saúde pública, se não fizermos algo hoje, podemos fazer amanhã que ninguém morre. Não estamos a falar de cuidados intensivos em que, se não for feito algo naquela altura, o doente pode morrer. O nosso trabalho não tem um carácter de emergência. Agora, tentamos todos os dias não deixar coisas “para amanhã”. Há pouco perguntava se estávamos preparados… Nunca estamos. O mais próximo daquilo que estamos a viver, ainda que numa escala muito mais pequena, foi a Gripe A. Lembro-me de, nessa altura, ter tido um dia em que atendi noventa e tal chamadas e achei imenso. Comparado com as que recebemos hoje, não é nada.

 

Como é que se lida com essa falta de preparação?

O que atrapalha mais é o stress, a angústia e a confusão das pessoas nos primeiros tempos. Há momentos em que um colega liga, mas ao mesmo tempo há outro telefone que está a tocar e não há quem o atenda… É esta atrapalhação colectiva que resulta de tantas informações que chegam ao mesmo tempo e que é difícil gerir. Decidir o que fazer primeiro quando estão constantemente a chegar coisas novas para fazer sem deixar nada a meio caminho.

 

Olhando para tudo com alguma distância… E compreendendo que seja complicado para alguém que tem vivido esta pandemia todos os dias, nos últimos seis meses… era possível ter-se evitado o estado em que o mundo está neste momento?

Acho que não. Hoje em dia, as pessoas vão a Barcelona tomar um café como eu vim aqui a Carnide falar convosco. Era impossível ter-se evitado porque as pessoas viajam muito e este vírus transmite-se de pessoa para pessoa. Além de que há todo um desconhecimento ainda em torno do vírus. Veja-se a Nova Zelândia, por exemplo, que estava há 100 dias sem casos e agora estão a aumentar. O que se está ou não a perceber sobre o comportamento do vírus é tão volátil que era impossível evitar.

 

Devemos esperar uma nova vaga de propagação do vírus como tanto se tem falado?

A China já voltou a ter casos na zona onde tudo começou. Há países que já estavam com poucos casos e agora estão outra vez num auge. Podem até não aumentar os casos, mas no Inverno soma-se a gripe e, certamente, será aumentado o número de grupos populacionais com vacinação obrigatória contra a gripe. Mesmo que não haja um aumento exponencial de casos de COVID-19, o seu tratamento com outros problemas respiratórios vai ser mais difícil de controlar. Prefiro pensar que vai haver uma segunda vaga e que temos de estar preparados psicologicamente.

 

A prudência de que falava há pouco…

Sim. De algumas qualidades que me reconheço, tenho uma de que me orgulho: sou resiliente. Tem sido essa resiliência que me tem ajudado a aguentar o embate destes dias.

 

Espero que, agora quando chegar ao carro, não encontre muitas notificações por ler…

Há alturas mais complicadas. Há dias tivemos zero casos. Telefonei a toda a gente para perceber se tinham mesmo visto aquilo bem. Mas logo na segunda-feira houve 28 novos casos [no ACES Lisboa Norte]. Há dias em que é possível lidar com distância, outros em que não dá sequer para imaginar isso.

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